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aos "Homens sensíveis" [2024]

 

Já faz um tempo que sinto estar gerando esse texto. Hoje, olhando pro sol de inverno com os olhos fechados, me veio o impulso de escrever e compartilhar. Além de ser uma tentativa de organizar os pensamentos, é também uma prática de ressonância com a minha atual leitura de cabeceira, o livro "Comunhão: a busca das mulheres pelo amor", último da trilogia sobre o amor escrito por bell hooks. 

 

Tenho gostado muito de conversar e ler sobre afeto, cuidado e intimidade com diferentes pessoas, procurando enxergar por diferentes ângulos. Em geral, tenho trocado com pessoas que vivem, viveram e/ou têm refletido de forma crítica sobre os relacionamentos afetivos entre homens e mulheres. Não apenas os relacionamentos entre casais heterossexuais, mas também outros tipos de vínculos que envolvem intimidade, tais como relações de amizade que, por vezes, esbarram também em parceria de trabalho (ou o inverso), relações entre mães e filhos, entre irmãs e irmãos, e por aí vai. 

 

A partir dessas conversas, leituras e também de experiências pessoais, tem ficado cada vez mais evidente pra mim (algo que, felizmente e provavelmente não é uma novidade para alguns que me leem agora) o quanto o patriarcado, cujo modo operativo tem como eixo tanto a sustentação do binarismo de gênero homem x mulher como a heterossexualidade tóxica, é um sistema não apenas sócio político, mas também, e fundamentalmente, um sistema sensório afetivo. Em outras palavras, a forma como amamos e somos amados, a forma como nos relacionamos afetivamente, como desejamos, como lidamos com as nossas emoções é, necessariamente, um fenômeno ao mesmo tempo somático e político, e que está diretamente influenciado pela lógica patriarcal. Sendo assim, e justamente por se tratar de corpo e política, é possível que seja encarado como algo dinâmico, plástico e, portanto, passível de ser transformado. Ufa!

 

Dito isso, o que tem se evidenciado pra mim é que existe na atitude masculina, socialmente construida e majoritariamente praticada por homens cis, uma repetição (estrutural) na forma como eles se desresponsabilizam do compromisso com o próprio amadurecimento emocional nas suas relações afetivas, principalmente com as mulheres. Pouco sabem (ainda) sobre a parte que lhes cabe na construção de um vínculo amoroso. Se abstém de forma mais ou menos velada do tal "construir junto", pois tem receio de que isso se torne ou um sufocamento da própria autonomia, como se estar vinculado fosse um impedimento para vivenciar as próprias escolhas e o próprio tempo, ou um desafio "grande demais" no qual não se sentem preparados para assumir. No final, são formas diferentes, porém complementares de praticar uma negligência absoluta com um cultivo do cuidado que seja recíproco e igualitário. Trabalho este que, como todes sabem, tem sido historicamente e em larga escalada exercido por mulheres. 

 

Depois de uma enorme jornada de conquistas importantes no processo de igualdade e emancipação feminina, o que fica explícito (e que tenho aprendido muito lendo hooks) é que ser um homem atento e preocupado com a luta feminista está muito distante de se comprometer verdadeiramente com a ação de desprogramar o patriarcado em seu nível molecular: o da intimidade. 

 

Ao invés de representarem o homem viril, racional, auto suficiente, determinado e provedor de segurança, muitos acabam fazendo uso da representação de uma "extrema sensibilidade" perante si e nas relações que estabelecem. Postura essa que acaba por gerar um problema muito sério de desigualdade e, arrisco dizer, de manutenção de poder. Ou seja, em comum acordo, muitos homens se mantém na posição de alguém "sensível e inseguro" e depositam (ou esperam) que as mulheres estejam a seu serviço, não mais para lavar as suas roupas ou compartilharem bons momentos de convivência, mas para lhes oferecerem suporte psíquico e emocional para o processo de "crise com a masculinidade da vida adulta" que os atormenta e amedrontam tanto. 

 

Nessa toada, não é incomum notar que o crescimento pessoal, emocional e, muitas vezes, profissional dos homens desenvolvido às custas do suporte psíquico de mulheres, acaba forjando a eles uma prosperidade individual. E isso se dá, proporcionalmente, às custas de uma enorme exaustão psicológica, quando não acompanhada de um profundo sentimento de solidão e abandono entre as mulheres. No fundo, seguimos, homens e mulheres, além de presos em uma dicotomia muitas vezes competitiva, insistindo em uma ideia insustentável de parceria, reproduzindo e mantendo relações desiguais que geram sofrimentos para todos os lados. 

 

A coisa ainda pode piorar caso a mulher deixe, por razões diversas, de oferecer os ouvidos e o colo esperados. Seja porque cansou. Seja porque adoeceu. Seja porque se distanciou fisicamente. Seja porque passou a desierarquizar as suas prioridades. Seja porque está buscando formas menos rígidas e descentralizadas de se envolver afetivamente. Seja porque simplesmente passa a reconhecer a sua própria fragilidade e vulnerabilidade e, diante da própria fraqueza, abre mão desse papel de fortaleza que a sociedade lhe impõe. A resposta que vem de muitos homens, muitas vezes, acaba sendo ou formas mais ou menos explícitas, conscientes e/ou inconscientes de vingança ou um profundo calar-se, um silenciamento que entope a garganta fazendo-os (não sei como) "seguir a vida", andando por aí como se nada estivesse acontecendo. 

 

É preciso que, principalmente os homens cis brancos heteressexuais (mas não só), entendam que não basta apoiar e incentivar as conquistas profissionais, a liberdade sexual, o crescimento intelectual das mulheres, dividir as contas e os trabalhos do lar, dar um colo ali e aqui, de vez em quando, quando convém. Não só não basta, mas se tudo isso estiver sendo um subterfúgio para não assumir a responsabilidade de amar e ser amado como forma política de liberdade recíproca, acaba que esta postura "sensível" e "disponível" se torna motivo para uma incalculável sobrecarga, adoecimento e razão de sofrimento para muitas mulheres. Ou seja, enquanto a aliança contra o patriarcado estiver servindo apenas como uma certa "válvula de escape", um comportamento "de fachada", que camufla e engana o compromisso dos homens com o processo íntimo de libertação de si da lógica patriarcal que operacionaliza o como se vincular afetivamente, o caminho por uma sociedade menos desigual e mais amorosa ficará ainda mais distante de todos nós. 

 

Encarar esse labor tem, de fato, muito a ver com cuidado e saúde. Trata-se de um trabalho de desintoxicação. E é no corpo onde esse processo acontece. Ou seja, é na experiência, na prática, na ação, no encontro. 

 

Arrisco dizer que, para este processo de desintoxicação acontecer, é urgente que seja levado mais a sério o entendimento de que cuidar não tem a ver (apenas) com oferecer e estar "sempre disponível" para ajudar. Ser aquela pessoa "interessada'’ em aprender com o outro. Ou ainda, como muitos homens fazem (por vezes, excessivamente), ser capaz de falar abertamente sobre os próprios sentimentos e emoções. 

 

Para libertar-se (se é possível, mas sendo bem otimista) das toxinas da lógica patriarcal em relação a como se envolver afetivamente é necessário, talvez, abrir mão do excesso de espelhamento de si em tudo e em todos como sendo, no mínimo, um primeiro passo. Ou seja, ser capaz de ouvir não apenas aquilo que sente, mas também afastar-se um pouco de si a fim de enxergar a outra pessoa não seguindo apenas suas próprias projeções e idealizações. Ouvir, ver e tocar a outra pessoa a fim de enxergá-la e acompanhá-la em sua pequenez. Ter a coragem de encarar a imperfeição de quem está bem perto de você como algo leve. Ser capaz de reconhecer tanto as próprias necessidades e angústias como as de quem está logo ali, do seu lado. 

 

Em suma, se dispor a estar junto em uma crise e na busca por um crescimento que é, no fundo, de todos nós. Não é justo pra ninguém carregar esse peso sozinho. 

 

A você que me leu até aqui e que a carapuça serviu, sim, esse texto é sobre você (mas não só). 



 

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