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A carta "à você" foi criada e publicada na revista de título ISSO SÓ NÃO EXISTE, a convite do selo Acampamento, uma plataforma movediça de pesquisa e criação em dança, articulada por Joana Ferraz e Marina Matheus.

ISSO SÓ NÃO EXISTE é uma publicação de caráter contínuo sobre dança e suas dramaturgias, que aproxima textos de diferentes artistas que refletem sobre seus fazeres, escrevendo através de e sobre lógicas que seus corpos e obras instauram.

Este Volume 1, organizado por Joana Ferraz, tem design do Érico Peretta, capa de Daniel Lobo (Dannyhell), preparação da Ana Godoy e conta com a participação de 15 artistas em suas 292 páginas (!) ~ Júlia Rocha, Marina Matheus, Rodrigo Andreolli, Jussara Belchior, Clarissa Sacchelli, Suiá Burger Ferlauto, Barbara Malavoglia, Carolina Bianchi, Danielli Mendes, Joana Ferraz, Bruno Moreno, Djalma Moura, Thais Di Marco, Isis Andreatta, Carolina Mendonça..

Mais informações sobre o selo acampamento  acesse aqui



 

​à você [2020]

Demorei bastante para te escrever. Eu sei. Peço desculpas pelo silêncio. Mas saiba que fiquei esses meses com você em mente. Verdade. Você me atiçou a coçar de novo nossa relação. E como temos uma relação longa, precisei criar certa coragem. Tenho muita coisa para te contar e já começo ansiosa por isso.  

Já fazem meses que estou distante do Brasil e hoje sinto no corpo o começo de mais um fim. No dia 2 de abril, escrevi isso: “e se eu colocar na origem dessa escrita o fenômeno? Alguma coisa muda imediatamente. Começo a tentar descrever o que acontece, o que se passa, o que consigo captar. Sinto que começo a vestir a memória dos espíritos que mudam. Sou mudança, apesar da paisagem insistir em se camuflar pra mim como se fosse sempre igual. Um recomeço começa quando o tempo, suspenso como agora, se destina a ser intocável, incognoscível. Quanto vai durar? Quando tudo isso vai acabar? Quero praticar estar aqui o máximo que conseguir, apesar da promessa falsa de uma vida que vai voltar. Não vai voltar. Nada volta. Sigo imaginando que mundo é esse sem futuro que estamos vivemos.”

 

No fundo, sigo ainda tratando de perceber o tempo que sobra, o tempo que falta, a ausência de um tempo que não repete nunca. Um tempo de mudança que excita ao mesmo tempo que aterroriza, que me convence de que certas coisas, afinal, nunca mudam. São irreparáveis. Sinto certo terror de estar diante de um tempo que engana sempre. Que se disfarça de novidade. 

Estou sendo genérica, mas acho que você deve estar me entendendo. Essa pandemia global escancara o que já era insuportável. Em pouco tempo tenho a sensação de que a gente começa a ver as mesmas merdas acontecendo, mas de formas camufladas. Não estou falando de coisas grandes. Mas tenho percebido os pequenos fenômenos cotidianos como sendo lugares onde se interiorizam lógicas institucionais e conservadoras do pensamento. Um conservadorismo na sua versão passiva agressiva. Falando sobre contextos em dança, tenho observado ao redor certa melancolia antecipada de um tempo por vir onde a presença física e corporal será coisa do passado. Frases do tipo “Estamos em extinção” ou “Como artistas das artes vivas, o mundo acabou”. Como se não soubéssemos o quão forte é a captura capitalística de realidades que desestabilizam certa ordem. Me coloco sim ao lado de pessoas que se interessam pelo momento corpo-a-corpo como algo simples e transformador. Mas eu acho que essa nostalgia de um certo futuro sem corpo é algo no mínimo cafona. Pra não dizer irresponsável com a ficção de um futuro no mínimo mais digno do que esse em que estamos. Acho mesmo uma chatice essa de reclamar a dança como algo que é tão sublime que enxerga sempre de cima os ruídos da vida coletiva em escombros lá em baixo. Tenho preguiça dessa solenidade. Porque de imediato me vem as perguntas: de que danças estamos falando? Quais corpos podem experenciar uma dança que seja imune a um contexto socialmente vertiginoso? 

Tenho pensado e vivido bastante questões como essa aqui em Lisboa. Não é teoria falar sobre como a posição eurocêntrica do pensamento é incapaz de criar distância de si mesma e praticar um olhar crítico sobre as próprias noções de verdade. É revoltante a habilidade incorporada de assimilar as coisas sempre no lugar de quem defini o “outro”, de quem formula sobre o “outro”, de quem categoriza, nomeia e informa a experiência do “outro” sempre carregada de uma bagagem arrogante de referências próprias como sendo únicas. Extrativismo. Não consigo pensar em outra palavra. Trazendo uma metáfora conhecida nas artes, tenho a imagem de que é como se houvesse sempre umx curadorx medíocre internalizadx, insaciável por sugar o “fora” e se deleitar sobre o próprio discurso. Soa competitivo a insistência em conservar essa superioridade, sabe? Não estou afim de competir. Mas tem coisa que acontece que não dá pra deixar passar. Tive algumas discussões dessa ordem por aqui. Uma delas foi com o tal de C. e em seguida com o J. que comentei rapidamente com você. Não foi fácil encontrar o lugar justo da denúncia, da reação, principalmente quando as coisas acontecem de forma nebulosa. Violentamente velada. O corpo sente a impotência forçada pelo silenciamento. É horrível. 

Já que eu sei que a impotência pode mesmo paralisar, o jeito é seguir tropeçando por aí. 

Então, queria te contar sobre esse novo trabalho que acabei fazendo aqui. Foi uma aventura criar algo nessas condições que estamos vivendo. Ainda não sei explicar bem, mas o que acabou acontecendo foi que a coisa se concentrou bastante no corpo. As perguntas sobre vitalidade e morte ou sobre como ativar e cessar certo tremor interno foram para o movimento. Mover no sentido de ativar remédio e veneno ao mesmo tempo. A pergunta sobre como lidar eticamente com a loucura e a vulnerabilidade na verdade abriu espaço para começar a experimentar encarnações de sonho, imaginação e invisibilidades. O assombro que me perseguia virou fantasmagoria. De novo os olhos foram para outro lugar que não este da verticalidade humana. Agora estão torcidos, em uma alucinação junto com o rosto e as mãos. Tem algo aí que me excita.  

Foi minha primeira experiência de imersão total numa criação. Dois meses fazendo só isso. Dia e noite. Estou sentindo que esse formato me ajuda muito. No início não imaginava criar um trabalho de dança. Estava bem aberta a expandir a linguagem. Mas, de repente, em isolamento, podendo usar um estúdio sozinha o tempo que precisasse, tomei gosto de novo. Isso foi bom. 

Finalmente consegui imergir no universo da Lygia Clark. Que artista né? É mesmo uma inspiração pra mim. Inclusive aconteceu uma super coincidência, dessas mágicas. Eu estava relendo as cartas entre a Lygia e o Hélio Oiticica e em uma delas a Lygia conta que alguns dos seus trabalhos foram criados a partir de sonhos que ela tinha. Imediatamente lembrei daquele sonho recorrente que já te contei algumas vezes. Aquele com chiclete, onde sonho que estou sempre em uma situação social e de repente começo a perceber que está se formando uma massa de chiclete no fundo da minha boca. Começo a tentar tirar aquela massa com a língua e não funciona. Encontro um modo disfarçado de tirar com as mãos e vou percebendo que quanto mais eu tiro mais chiclete se forma. Vou ficando desesperada com isso. Praticamente enfio as mãos inteiras dentro da boca e o chiclete vai ficando maior e mais denso, gruda nos dentes, parece que vou arrancar os dentes de tanto e tão rápido que tento me livrar daquilo. Quando acordo fico com aquela dúvida se a coisa aconteceu mesmo ou não. Já tentei inclusive conversar comigo mesma no sonho para me convencer de que estava sonhando. Foi então que resolvi experimentar como poderia materializar isso. Comprei um saco de chicletes e coloquei inúmeros deles na boca até virarem uma massa enorme. Em pé comecei a tirar essa massa com as mãos, pouco a pouco. Fiz algumas vezes esse experimento. Gravei em vídeo. Não sei se ficou interessante como vídeo, mas posso te mostrar um dia. Em um desses experimentos fiquei interessada na quantidade de baba que essa ação gerava. Comecei a me deslocar em quatro apoios, para trás, deixando um rastro de baba no chão. Nesse dia lembrei muito do trabalho “baba antropofágica” da Lygia e nomeei essa minha ação de “baba antropomágica”. Depois de alguns dias, continuei a leitura das cartas e outros estudos. Encontrei uma informação que me arrebatou. Já não sei mais qual foi a fonte, mas descobri que a Lygia criou a “baba antropofágica” a partir de um sonho recorrente com uma substância que não parava de sair da sua boca. E foi a partir desse sonho que ela criou essa ação coletiva onde as pessoas usavam carretilhas de linha na boca de modo que fizessem a baba ser engolida, expurgada e introjetada em um outro corpo. Fiquei impactada com essa coincidência e decidi então utilizar os tais carretéis de linha dentro da minha boca. Se abriu um universo de possibilidades. O momento final da performance que apresentei aqui é justamente isso: longos dez minutos em que estou nua, suada, com os olhos vesgos e começo lentamente a desenrolar com a ponta dos dedos um carretel de linha de dentro da minha boca. 

Agora, ando numa fase mais distante do corpo. Tenho experimentado escrever mais. Essa coisa que vai e volta na minha vida. Mas acho que dessa vez estou começando a levar um pouco mais a sério. Tenho gostado de investir em uma escrita que descreve ao mesmo tempo que inventa. Um exercício de fazer descer uma imaginação incorporada, sem forma predefinida, nebulosa, entorpecida. Ficar transitando entre certo ensurdecimento temporário do corpo e um jorro de palavras sussurradas de fora de mim. Tenho praticado isso em um diário e também em uma tentativa de partitura expandida dessa performance que criei aqui. Algo que sirva como memória, mas também como premonição. Como um avesso do corpo e do movimento. Como um outro tipo de morfologia da mesma coisa. Sonhar enquanto escrevo. Escrever sonho enquanto me movo. Criar em ambos uma história brutamente sensorial. Tenho escrito esses “micro-sonhos” sem filtro nenhum. Sem padrão métrico. Sem correção. Um vômito. Um pequeno gozo. Depois eu vejo se é o caso de voltar para eles. No final dessa carta te mando alguns. Adoraria receber suas impressões. Elas são sempre muito afiadas.

Depois de idas e vindas, cancelamentos de voos, planos incertos e desejos atropelados, volto em meados de setembro. Já entrando de cabeça em um novo projeto com o VÃO. Estou feliz. Acho mesmo que se encerra um ciclo aqui. É mesmo lindo viver perto da praia. Sempre gostei muito de me enfiar no mar e nadar para longe da areia.    

Espero que me responda logo. Não vejo a hora de saber mais de você. Como ainda estou sem moradia fixa você pode escrever por e-mail mesmo. Tenho acessado todos os dias. Segue aqui o endereço: isis.andreatta@gmail.com 

 

Com amor e distância,

Isis

    

    (PS: os micro-sonhos são uma espécie de segredo, tá? Estou só começando, talvez nunca os termine. Não tenho objetivo nem certeza nenhuma sobre isso. Estou compartilhando com você apenas porque temos proximidade e sei que você gosta de coisas que não tem projeto a priori.) 

 

#2 Quando o riso toma corpo lentamente e se derrete inteiro. Gargalhar de olhos fechados mirando o céu distante. Uma besteira incontrolável que permanece na barriga pesando todo o corpo para trás. Ridícula. Embriagada de líquido rosa na cara que brilha e ofusca os olhos. Sai urina pelos meus mamilos e uma asa de super-heroína pela lombar. Um grande arbusto de plantas artificiais se apoia no meu púbis e atrai um enxame de abelhas que circula ao redor de mim em busca de um doce. O corpo sofre de tanto rir.  

 

#4 Zumbido. Enxame. Bichos que falam rodeiam minha orelha. Por vezes um deles pousa no meu cabelo. Consigo escutar de longe que muitos outros estão por vir. Multiplicam-se. Corpo humano que se aterroriza quando o sol se põe e seres minúsculos saem de suas tocas para habitar a floresta a noite. As asas são brilhantes, verde neon. O medo do ataque iminente. O desejo de ser inseto também. Um desses bichos entra pelo ouvido e lá dentro sussurra um segredo que toca o cérebro: existe um corpo morto abandonado dentro de mim que está entrando em decomposição. Os órgãos fedem e atraem outros tipos de bichos. Momento de pavor diante da transformação em processo. Tirar a pele e se surpreender com o que está embaixo dela. As vozes são esse aviso, alerta de que há um mundo podre e novo para além da superfície das coisas.

 

    #5 Endurecer e virar pedra instantaneamente. Ser seca e dura. Sofrer um congelamento total do corpo. De dentro pra fora. Momento de susto e frio quando se ouve alguém estranho dentro de casa. Paralisação. Não capacidade de reagir ao tormento. Enrijeci porque era a única coisa que podia fazer. Não tive como reagir ao medo, nunca soube como. O momento do susto é quando suspendo a capacidade de ir para frente ou para trás, de tomar decisão. A única escolha é ficar ali, imóvel. Como uma estátua carregada de história que se reforça na minha imobilidade. Monumento parado por fora agitado por dentro. Prestes a ser tombado. Em vertigem.   

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