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Texto criado a partir do processo criativo do solo de dança "Bolsa Abismo" desenvolvido entre 2020 e 2023 entre as cidades de São Paulo, Lisboa e Amsterdam.
 

A criação do solo evoca um pensamento coreográfico que teve como disparador a pergunta sobre como considerar cuidado como uma prática de percepção não hegemônica, encarando o"co-habitar o fundo" enquanto uma experiência de imaginação radical, de sensorialidade ficcional, de vulnerabilidade compartilhada e de perigo eminente.
 

Tanto o trabalho performático como a prática de escrita que o acompanha são terrenos onde evoco uma linguagem que brota da experiência de estrangeirismo e que tem a paisagem oceânica, especificamente o abismo sub atlântico, como território de ficção e poesia.

verter [2023 -24]

​

a cada mergulho, mais subaquática me torno. 

as orelhas conchas. 

as costelas guelras. 

 

minha pele descama

se abre nela um buraco

e nele

me lanço.

 

afundo.

 

desde o fundo,

deságuo. 

verto abismo.

 

insisto na tentativa de manter rugosa a experiência da vida, desde quando esta se viu violentamente despossuída,

 

planificada,

 

sem profundidade.  

 

[...]

 

desde quando afundei pela primeira vez, meus olhos já não enxergam mais em linha reta.

 

minha memória linear falha.

meu corpo dissipa.

minhas mãos torcem o pensamento estratificado. 

 

aprendo.

 

aprendo que cair nos tremores oceânicos do corpo é encantaria. 

é o que fere e o que cicatriza. 

é o que delira

é o que me permite re-imaginar um lugar para pertencer. 

 

seja este lugar um quase-lugar entremares. 

um quase-som entre céu e terra. 

um vazio-cheio entre você e eu. 

 

aprendo que, uma vez submersa, o silêncio ensurdecedor inicial aos poucos abre espaço nas têmporas, órgãos inventados que se tornam conchas acústicas capazes de escutar sons de outros tempos. 

 

aprendo que apesar dos ruídos por vezes inaudíveis, é possível contemplar a música do fundo.

 

é possível ver outras coisas, apesar do excesso de claridade que vem da superfície.

 

é possível cair para cima,

confiar nas costas,  

na água que vira chão. 

 

uma vez no abismo subaquático é possível abrir bem os olhos até que seja possível enxergar um borrão nebuloso, 

 

uma paisagem embaçada. 

 

[...] nessa paisagem habitam outras criaturas. 

todas sem forma legível. 

seres de tamanhos diversos. 

uma multidão multicolorida.

 

em cacofonia e aliança com esses seres, descubro que quando mergulho na vertigem do profundo, sou difícil de ser capturada porque conheço o fluxo das águas e falo por todas as partes do meu corpo.

 

[...]

 

este [poderia ser] então um relato sobre como fazer do aquário mar aberto.  

do corpo maré

e da palavra espuma.

 

ou ainda, [poderia ser] simplesmente um gesto contravertido de pausar em frente a angústia do naufrágio e dizer: 

  • “ei, agora você é o oceano!” 

 

 ou seja, afundar como quem deságua em um "em si" multifacetado e infinitivo. 

 

afundar como quem cai corajosamente no que está para além do que supoem os que enxergam apenas desde a perspectiva plana do continente.

 

bom, a esses, em particular, aos que acham estar seguros em suas embarcações ou obstinados por chegar enfim à solidez da terra continental, nada parece estar acontecendo abaixo de si. São incapazes de escutar o falatório subaquático, tampouco de enxergar para além da linha do horizonte. Insistem em usar armas de pesca e tecnologias de controle das marés. Fazem uso das palavras-algas como se fossem ornamentos plastificados. Possuem inúmeras ferramentas de expropriação das águas, mas  eles mesmos mal sabem nadar. 

 

[...]

 

portanto, diante da realidade esmagadora imposta pelos que vivem seguros em suas Terras Firmes, é melhor aprender a confiar na linguagem do abismo.

 

ao invés de se desesperar com a carne aprisionada pela pressão das águas do fundo, ou com a impossibilidade de ver além do que a mão pode alcançar, é melhor arredondar os ossos até esses se tornarem tentáculos esponjosos e deixarem de ser lanças viris, pontiagudas e quebradiças. 

 

é melhor deixar o sal arder as córneas por inteiro até fazer do globo ocular superfície caleidoscópica, 

da pupila caverna misteriosa, 

da íris e do corpo vítreo dos olhos um oceano gosmento e especular que preenche de cor e brilho a brancura e secura do olhar. 

 

é melhor afundar até as veias se tornarem rios

a pele areia

a língua cauda

 

até descobrir que lançar-se

da superfície ao fundo

e do fundo a superfície 

é, justamente, o lugar onde é possível habitar [o abismo] junto. 

 

afinal, apesar de [parecer] ser um precipício fatal, habitar o fundo é, por um lado, veneno, mas, por outro, [e quando dançado em espiral] cura e transmutação.

 

dito tudo isso, concluo que o que afoga mesmo não é a falta de oxigênio,

tampouco o desgarrar das margens continentais que definem.

 

o quê faz o corpo afogar 

é o excesso de eficiência na leitura do obscuro. 

é o controle da sutileza. 

o não-dito que esmaga o estranho. 

a brutalidade disfarçada de leveza. 

são as palavras que forjam cuidado, mas que estilhaçam os corpos [e as danças] daqueles que tentam habitar outras águas para além das quais foram destinados a naufragar. 

 

é a racionalidade compulsória, tóxica, abusiva e exploratória o quê realmente faz naufragar. 

 

portanto, [e para finalizar], vale dizer  que:

  1. assustador mesmo é a perversão impregnada na bidimensionalidade do pensamento. 

  2. a violência [que liberta] está na força de vida que é evocada na revolta diária frente a despossessão do mistério

      e, por fim, a monstruosidade está nos olhos de quem vê. 

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